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Saúde nas metrópoles - Doenças infecciosas

Resumos

A urbanização é um processo irreversível em escala mundial e estima-se que o número de pessoas que vivem em cidades deverá atingir 67% da população do planeta até 2050. Os países de baixa ou média renda, por sua vez, possuem 30% a 40% da população urbana vivendo atualmente em favelas, em situação de risco para diversos agravos de saúde. No Brasil, embora 84,3% da população residissem em áreas urbanas já em 2010, não se verificam no momento ações consistentes voltadas ao enfrentamento das questões de saúde urbana. Neste artigo discute-se a situação epidemiológica de agravos infecciosos de interesse para a saúde pública (dengue, infecção por HIV/aids, leptospirose, hanseníase e tuberculose) a partir do ano 2000 nas 17 metrópoles do país, de modo a esclarecer o papel atual das doenças infecciosas no contexto da saúde urbana brasileira.

Saúde urbana; Doenças infecciosas; Brasil


Urbanization is an irreversible global process and the number of people living in cities is estimated to reach 67% of the world population by 2050. In low- and middle-income countries, 30% to 40% of the population currently lives in slum areas, under risk of several diseases. Even though 84.3% of the Brazilian population already lived in urban areas in 2010, no consistent initiatives have been implemented to address urban health issues. We discuss here the epidemiological features of communicable diseases that are relevant to public health (dengue, HIV/aids, leptospirosis, leprosy and tuberculosis) in Brazil's 17 metropolitan areas since 2000 to help clarify the current role of infections in the context of Brazilian urban health.

Urban Health; Communicable Diseases; Brazil


Apresentação

Em 2009 o número de pessoas que viviam em cidades passou a corresponder à metade da população mundial e estima-se que em 2050 alcançará a proporção de 67% dos nove bilhões de habitantes do planeta (Barbiero, 2014BARBIERO, V.K. Urban health: it's time to get moving!. Glob Health Sci Pract., v.2, n.2, p.139-44, 2014.). Porém, nos países de baixa ou média renda, 30% a 40% da população urbana vivem em favelas, sendo essa proporção ainda maior em países africanos (62%).

O viver na cidade, se por um lado pode trazer vantagens para a saúde da população, ao propiciar maior facilidade no acesso a programas e serviços, por outro, carrega em si os desafios advindos da maior densidade demográfica e das alterações do ambiente físico e das relações sociais, com potencial risco de danos à saúde. Embora se constate ser essa uma tendência demográfica irrefutável, não se verificam no momento ações consistentes voltadas ao enfrentamento das questões de saúde associadas a um processo acelerado de urbanização dessa magnitude.

No Brasil as transformações demográficas foram expressivas. Além da transição demográfica vista nas últimas décadas, com redução da natalidade e da mortalidade e consequente envelhecimento da população, deve-se destacar que o êxodo rural foi marcante. Comparada à situação em 1940, quando 68,8% da população residiam em áreas rurais, a população urbana brasileira passou a ser predominante a partir de 1970, atingindo 84,3% no ano de 2010 (Teló; David, 2012).

Num ambiente urbano em rápida transformação, em que as condições de vida da população são influenciadas por fatores de natureza ambiental, demográfica, sociocultural, econômica e política, entende-se que tais fatores podem alterar a ocorrência de diversos agravos à saúde, sejam eles agravos infecciosos, doenças não transmissíveis, ou mesmo, danos relacionados à saúde ambiental.

Para melhor contextualizar o tema de interesse deste artigo é importante ressaltar que na última década o Brasil apresentou expressiva melhora em seus indicadores socioeconômicos e de saúde. A renda per capita dos brasileiros cresceu em média 36% entre os anos 2002 e 2012. A desigualdade social, embora ainda considerada entre as mais altas do globo, reduziu-se no mesmo período (IPEA, 2011IPEA. A década inclusiva (2001-2011): desigualdade, pobreza e políticas de renda. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2011.; 2013; Rasella et al., 2016RASELLA, D. et al. Effect of a conditional cash transfer programme on childhood mortality: a nationwide analysis of Brazilian municipalities. Lancet, v.382, p.57-64, 2013.). Analogamente, houve incremento dos indicadores de saúde do país, particularmente no que se refere à redução das taxas de morbidade e de mortalidade por doenças infecciosas em todos os grupos etários da população (Barreto et al., 2011BARRETO, M. L. et al. Successes and failures in the control of infectious diseases in Brazil: social and environmental context, policies, interventions, and research needs. Lancet, v.377, p.1877-86, 2011. ). Tais alterações têm sido atribuídas ao crescimento econômico, ao aumento da renda das parcelas mais desfavorecidas da população e a políticas sociais e de saúde, incluindo os programas de transferência de renda (bolsa família) e a estratégia saúde da família (Victora et al., 2011VICTORA, C. G. et al. Health conditions and health policy innovations in Brazil: the way forward. Lancet, v.377, p.2042-53, 2011.; Rasella et al., 2013).

Saúde urbana nas metrópoles - situação das doenças infecciosas

Neste artigo discutimos as tendências observadas na incidência de doenças infecciosas e na mortalidade a elas relacionada a partir do ano 2000 nas metrópoles brasileiras.

Para efeito de análise foram selecionadas as cidades brasileiras com população superior a 1.000.000 de habitantes, segundo as Estimativas Populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As cidades de São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), Brasília (DF), Fortaleza (CE), Belo Horizonte (MG), Manaus (AM), Curitiba (PR), Recife (PE), Porto Alegre (RS), Belém (PA), Goiânia (GO), Guarulhos (SP), Campinas (SP), São Luís (MA), São Gonçalo (RJ) e Maceió (AL) apresentam em conjunto uma população estimada em 44.890.118 habitantes, que correspondem a 21,9% da população brasileira. No ano 2000, 13 entre os 17 municípios selecionados já contavam com população acima de um milhão de habitantes. No decorrer da série histórica analisada, entretanto, passaram adicionalmente a compor a lista de metrópoles brasileiras os municípios de Campinas (SP), São Gonçalo (RJ), São Luís (MA) e Maceió (AL).

Os agravos infecciosos de interesse em nossa análise foram definidos a partir de sua magnitude em termos de morbidade e/ou mortalidade e incluem doenças virais (dengue e infecção por HIV/aids) e bacterianas (hanseníase, leptospirose e tuberculose). Analisou-se a série histórica entre 2001 e 2015 para dengue, leptospirose e hanseníase; de 2002 a 2014 para aids; e de 2001 a 2013 para tuberculose.

Fontes de dados

A vigilância epidemiológica consiste na coleta regular e sistemática de dados de ocorrência de problemas de saúde considerados prioritários, com o propósito de nortear as ações de prevenção e controle, bem como avaliá-las, e trabalha com a lógica da notificação compulsória de doenças, ou seja, a comunicação obrigatória à autoridade sanitária da ocorrência de cada caso das doenças sob vigilância. Cada país, de acordo com as suas características epidemiológicas e demográficas, seleciona as doenças-alvo de vigilância. No Brasil, cabe à Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde a seleção do elenco de doenças de notificação compulsória.

A lista é revisada periodicamente, no sentido de contemplar as mudanças no perfil de morbidade da população. No Brasil, a última revisão da lista de doenças de notificação compulsória ocorreu recentemente (em 18.2.2016), com a inclusão da doença pelo vírus Zika. A lista vigente no Brasil hoje inclui 48 doenças, quadros sindrômicos e agravos à saúde.

O Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SNVE) foi implantado no Brasil a partir de 1975, como uma das respostas governamentais à grande epidemia de meningite meningocócica que ocorreu no país naquela década. Desde o início da década de 1990, o SNVE passou a utilizar um sistema informatizado para registro das doenças de notificação compulsória, o Sistema Nacional de Notificação de Agravos (Sinan).

Com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), a partir do final da década de 1990, as ações de vigilância epidemiológica, prevenção e controle de doenças foram descentralizadas para os municípios. O Ministério da Saúde é o órgão formulador de políticas, responsável pela normatização e coordenação das ações de vigilância, prevenção e controle de doenças, além de ser o seu principal financiador. Aos estados cabe a coordenação dessas atividades em seu nível, e aos municípios, a execução das ações.

Com a notificação compulsória de doenças, a vigilância epidemiológica tem a pretensão de universalidade, ou, em outras palavras, conseguir registrar todos os casos das doenças sob vigilância. Entretanto, a universalidade da notificação é antes uma meta do que uma realidade. Uma série de fatores faz que a subnotificação ocorra, em maior ou menor grau. Dependendo da gravidade do quadro da doença, o indivíduo pode decidir não procurar um serviço de saúde. E uma vez que ele chegou a um serviço, o seu caso pode ser notificado ou não. Tradicionalmente a cultura dos profissionais de serviços de saúde no Brasil valoriza pouco o registro de informações. A notificação é encarada, por grande parte dos profissionais e dos serviços de saúde, como "burocracia", algo inútil e que os faz "perder tempo". Há inclusive um viés de estrato social, os profissionais notificam os casos atendidos nos serviços públicos, e deixam de fazê-lo quando estão nos serviços da rede privada ou em seus consultórios. "Notificação é coisa de pobre", chegam alguns a afirmar. Dentre as iniciativas para reduzir a subnotificação no país, uma das mais relevantes foi a implantação da rede de Núcleos de Epidemiologia Hospitalar, hoje existentes na maioria dos grandes hospitais públicos de referência no país. Esses núcleos têm entre suas atribuições a busca sistemática de casos suspeitos de doenças de notificação compulsórias atendidos naquelas unidades hospitalares.

Outra iniciativa visando à redução da subnotificação dos casos de aids é a "lincagem" rotineira do banco de dados de casos notificados com os dados produzidos por outros sistemas de informações específicos do Programa de DST/aids (sistemas de informação de exames específicos: carga viral e contagem de linfócitos T CD4+, e sistema de registro de dispensação de medicação antirretroviral), e com o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM). Essas iniciativas permitem captar os casos de aids que não foram notificados, mas acessam a rede de serviços do SUS para realização de exames ou busca de medicação, e ainda aqueles que não foram notificados, mas tiveram a aids registrada como causa do óbito. De uma maneira geral, as doenças mais graves, que levam à hospitalização, e aquelas crônicas (de longa duração) tendem a ser mais notificadas do que aquelas mais brandas, de atendimento ambulatorial.

Os dados de ocorrência das doenças abordadas neste artigo foram obtidos por intermédio da ferramenta de busca Sistema de Apoio à Gestão Estratégica do SUS (Sage), do Ministério da Saúde (http://sage.saude.gov.br/#), que capta os dados produzidos por diversas fontes do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica. No caso específico da taxa de detecção de aids baseou-se nos dados fornecidos pelo Boletim Epidemiológico de HIV/aids 2015, emitido pelo Ministério da Saúde, pela maior completude do banco de dados utilizado para as análises ali contidas. Nessas são computados os casos de aids notificados no Sinan, os declarados no SIM e ainda aqueles registrados nos sistemas Siscel e Siclom, que registram, respectivamente, os resultados de exames laboratoriais empregados no seguimento de pessoas vivendo com HIV e a dispensação de medicamentos antirretrovirais. A taxa de mortalidade de aids para o ano 2014 foi obtida do Boletim Epidemiológico de HIV/aids 2015 do Ministério da Saúde, pois os dados existentes no sistema Sage consideraram a séria histórica até 2013.

Indicadores epidemiológicos analisados

  • - Dengue: número de óbitos por dengue no período - descreve o total de óbitos por dengue no período; taxa de incidência por dengue - refere-se ao número de casos de dengue, excluídos os casos com classificação final descartado, dividido pela população total residente no mesmo período.

  • - Aids: taxa de detecção de aids - refere-se ao número de casos de aids identificados no período, dividido pela população no mesmo período; taxa de detecção de aids em menores de cinco anos de idade - considera número de casos de aids em menores de cinco anos de idade, identificados no período, dividido pela população dos menores de cinco anos de idade do mesmo período; taxa de mortalidade por aids - trata do número de óbitos por aids no período, dividido pela população no mesmo período.

  • - Leptospirose: taxa de incidência de leptospirose - considera o número de casos novos confirmados de leptospirose, dividido pela população total residente no período determinado; taxa de letalidade de leptospirose - refere-se ao número de casos de leptospirose em determinado ano e local de residência, dividido pelo número total de casos de leptospirose em determinado ano e local de residência.

  • - Hanseníase: taxa de detecção de hanseníase na população em geral - refere-se ao número de casos novos de hanseníase residentes em determinado local e diagnosticados no ano da avaliação, dividido pela população total residente no mesmo local e período; taxa de detecção de hanseníase em menores de 15 anos - considera o número de casos novos em menores de 15 anos de idade residentes em determinado local e diagnosticados no ano da avaliação, dividido pela população de 0 a 14 anos no mesmo local e período; taxa de detecção com grau 2 de deformidade - trata do número de casos novos com grau 2 de incapacidade física ao diagnóstico, residentes em determinado local e detectados no ano da avaliação, dividido pela população residente no mesmo local e período.

  • - Tuberculose: taxa de incidência de tuberculose - considera o total de casos novos de tuberculose (todas as formas) em determinado local e ano, dividido pela população residente nesse mesmo local e ano; taxa de incidência de tuberculose bacilífera - refere-se ao total de casos novos de tuberculose bacilífera em determinado local e ano, dividido pela população residente nesse mesmo local e ano; taxa de mortalidade por tuberculose - trata do número de óbitos por tuberculose no período, dividido pela população residente nesse mesmo local e ano.

Todas as taxas são expressas para 100.000 habitantes. As médias para o conjunto dos 17 municípios são apresentadas nos gráficos para todas as doenças selecionadas. O indicador de mortalidade por dengue relaciona-se ao número absoluto de óbitos e a taxa de letalidade de leptospirose usa fator de triplicação 100.

Situação epidemiológica das doenças de interesse

1) Dengue

A dengue é uma arbovirose (termo derivado do acrônimo em inglês, "arthropode borne viruses"), cujo espectro clínico pode variar de infecções assintomáticas até quadros graves e fatais. Os agentes etiológicos, os vírus dengue, numerados de 1 a 4, são antigenicamente distintos, mas provocam a mesma doença no ser humano. A infecção induz a imunidade homotípica de longa duração, ou seja, o indivíduo que se infectou por um dos sorotipos adquire imunidade para aquele sorotipo, mas permanece suscetível aos outros três. E mais, a infecção secundária (quando o indivíduo "pega" dengue pela segunda vez) está associada a uma maior gravidade da doença. A transmissão dos quatro vírus da dengue ocorre por intermédio do inseto vetor, os mosquitos hematófagos do gênero Aedes, com destaque para o Aedes aegypti. Trata-se de espécie antropofílica, muito bem adaptada à vida urbana das metrópoles dos países periféricos, onde a intensa migração para as cidades, a partir da década de 1960, fez ampliar-se a parcela da população urbana vivendo em habitações subnormais, com limitado acesso aos serviços urbanos básicos, como abastecimento regular de água, coleta de esgotos, coleta de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais.

Até a década de 1950 a ocorrência de dengue restringia-se a nove países do Sudeste Asiático. Naquela década a dengue foi identificada no Continente Americano, em Trinidad-Tobago, e na década seguinte, na Venezuela e outras ilhas caribenhas. Com a intensificação do comércio internacional e do trânsito de pessoas, que acompanham o processo de globalização, a dengue também se globalizou e hoje sua transmissão já foi registrada em mais de 100 países, fazendo da dengue o modelo de doença infecciosa emergente e reemergente. O aquecimento global também pode ter desempenhado um papel importante na sua disseminação, especialmente nas áreas de clima mais ameno, como o sul da Europa e da América do Norte, no Japão e outras partes da Ásia.

Entre as décadas de 1950 e 1970 a maioria dos países das Américas engajou-se no projeto capitaneado pela Organização Panamericana da Saúde (Opas) de erradicação do Aedes aegypti. A iniciativa continental, motivada pelo temor da reemergência da febre amarela urbana, foi relativamente bem-sucedida, com a eliminação do mosquito na maioria dos países, exceto na Venezuela e algumas ilhas do Caribe. No Brasil, o inseto foi considerado "erradicado" até 1976, quando voltou a ser observado em Salvador, e gradativamente disseminou-se por todo o país.

No Brasil, a primeira epidemia de dengue com confirmação laboratorial ocorreu em Boa Vista, capital do então território federal de Roraima, em 1982/1983. Como o trânsito de mercadorias e pessoas entre o território e o restante do país era relativamente restrito na época, a doença não se disseminou para outros locais. Porém, em 1986, o vírus dengue 1 emergiu no Rio de Janeiro, de onde disseminou-se para o restante do país. Em 1990 o vírus dengue 2 foi introduzido no país, e em 2002, o vírus dengue 3, também ambos no Rio de Janeiro. Em 2010 foi confirmada a circulação no país do vírus dengue 4, simultaneamente identificado no Amazonas e no interior de São Paulo.

Nas primeiras duas décadas, a dengue caracterizou-se no país como uma doença urbana, atingindo os grandes centros populacionais, inicialmente das regiões Sudeste e Nordeste, e em seguida Norte e Centro-Oeste. Na última década a sua distribuição generalizou-se, com a observação de epidemias em cidades de médio e pequeno portes. Ocorreram três grandes picos epidêmicos, em 2010, 2013 e 2015, todos eles com mais de um milhão de casos prováveis notificados. A curva de incidência no país permanece ascendente. Em 2015 foram mais de 1.649.000 casos prováveis, o que corresponde a uma incidência de 813 casos para cada 100.000 habitantes.

As epidemias de dengue têm se caracterizado pela alternância dos sorotipos predominantes e das regiões geográficas mais atingidas. No pico epidêmico de 2002, dentre as cidades analisadas, as maiores taxas de incidência observaram-se no Rio de Janeiro (e em São Gonçalo), em Recife e Goiânia. Em 2008, as mais atingidas foram Rio de Janeiro, Goiânia e Fortaleza. Em 2013, novamente o Rio de Janeiro (e São Gonçalo), Goiânia e Belo Horizonte, e em 2015, Campinas, Goiânia, Recife, Fortaleza e Guarulhos. Na cidade de São Paulo, embora já se observasse a transmissão autóctone da dengue desde o início da década passada, só nos últimos dois anos é que a incidência foi mais expressiva. O estado de São Paulo foi o epicentro da epidemia de 2015. Nele foi registada cerca da metade dos casos notificados em todo o país, e mais da metade dos óbitos. Uma das hipóteses sugeridas para explicar a epidemia paulista de 2015 foi a sua associação temporal com a maior seca já observada no estado, que teria feito que a população armazenasse água para consumo, aumentando o número de potenciais criadouros do mosquito (Figura 1).

Figura 1
- Taxa de incidência de dengue e número absoluto de óbitos por dengue em metrópoles brasileiras (2001-2015).

No ciclo epidêmico de 2007-2008, observou-se em algumas cidades das regiões Norte e Nordeste um aumento da frequência de casos graves de dengue em crianças, o que fez supor que estaríamos diante de uma mudança na epidemiologia da doença, na direção de um "padrão asiático" da dengue. Na Ásia, com a grande circulação dos vírus dengue, há muito tempo, a maior parte da população adulta já se infectou mais de uma vez, tornando-se imune a uma parte ou a todos os quatro sorotipos, assim a dengue é predominantemente uma doença pediátrica, acometendo as crianças que ainda não tiveram tempo de se infectar. Entretanto, essa observação não se configurou enquanto uma tendência, e desde 2010 se vem observando em nível nacional um aumento da proporção de casos graves em idosos. Na epidemia de 2015, mais da metade dos óbitos ocorreu entre os maiores de 60 anos de idade.

Como o espectro clínico da dengue é extremamente variado, o número de casos notificados reflete, em grande parte, a capacidade dos serviços de saúde no seu atendimento nos momentos de pico epidêmico, bem como a capacidade da vigilância epidemiológica em detectá-los e notificá-los. O número de casos reflete também a "experiência" da população com as epidemias. Como as epidemias de dengue tendem a apresentar características "explosivas" (a concentração de um grande número de casos em curto período de tempo), elas levam a intensa sobrecarga dos serviços de urgência/emergência, ocasionando longas filas e demora no atendimento.

A população que já passou por múltiplas epidemias tende então a reduzir a procura pelos serviços, só os buscando em casos de maior gravidade, ou de necessidade de um atestado para justificar a falta ao trabalho. Assim, embora a série histórica de casos notificados seja capaz de revelar tendências da ocorrência da doença, ela não traduz a totalidade da experiência de dengue dessas populações.

Os inquéritos sorológicos realizados em amostras representativas da população, ao detectar anticorpos antidengue no soro de uma amostra populacional, vêm demostrando soroprevalências entre 50% e 80% nas cidades das regiões Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste e Norte do país, revelando uma disseminação da infecção ainda maior do que apontado pelo número de casos notificados. Estudo realizado no Recife demonstrou associação entra a soroprevalência e o nível socioeconômico dos bairros, sendo maior no estrato amostral formado pelos bairros mais pobres. Nesse estudo, não sair do bairro para trabalhar ou estudar foi um fator de risco no estrato mais pobre. Nos estratos intermediário e alto, o número de pessoas por cômodo associou-se à maior prevalência, e ainda, no estrato alto, morar em casa (em comparação a morar em apartamento) foi também um fator de risco para a soroprevalência (Braga et al., 2010BRAGA, C. et al. Seroprevalence and risk factors for dengue infection in socio-economically distinct areas in Recife, Brazil. ActaTropica, v.113, p.234-40, 2010.).

2) HIV/aids

A síndrome da imunodeficiência adquirida (aids), identificada inicialmente do ponto de vista clínico em populações vulneráveis da América do Norte no início dos anos 1980, foi relacionada à infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) após sua descrição em 1983. Ao longo das últimas três décadas esse agravo passou a ser considerado uma epidemia de escala mundial, ou seja, uma pandemia. Ao final de 2014, estimou-se a população global de pessoas que vivem com HIV (PVH) em 36,9 milhões, e 26 milhões dessas habitavam o continente africano. A América Latina contava à mesma época com 1.700.000 de PVH, das quais 780.000 residiam no Brasil (Unaids, 2015UNAIDS, 2015 - UNAIDS. AIDS by the numbers 2015. Disponível em: <http://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/AIDS_by_the_numbers_2015_en.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2016.
http://www.unaids.org/sites/default/file...
).

Os conhecimentos acumulados desde a descrição original da aids fizeram-nos entender a aids como a exteriorização clínica da doença relacionada à infecção pelo HIV, que surge em consequência da deterioração funcional do sistema imunológico, com advento de infecções endógenas, causadas por agentes infecciosos de comportamento oportunista, ou mesmo de neoplasias. Distinguem-se, dessa forma, os indivíduos infectados pelo HIV que ainda não desenvolveram a doença (portadores assintomáticos) e os pacientes que manifestaram a doença aids. Do ponto de vista de vigilância epidemiológica, o Ministério da Saúde até recentemente compilava notificações de casos de aids, exclusivamente, motivo pelo qual neste trabalho apresentamos dados epidemiológicos relativos à ocorrência de casos dessa doença e de óbitos a ela relacionados. Deve-se, entretanto, ressaltar que os dados relativos à detecção de casos de aids não nos permitem entender com precisão a dinâmica da epidemia da infecção por HIV no momento da análise, tendo em vista que em PVH não submetidas a tratamento antirretroviral, o aparecimento dos sintomas da aids ocorre, em média, até 7 a 10 anos após a aquisição da infecção.

A resposta brasileira de enfrentamento público da epidemia de HIV foi rápida e eficiente, conforme apontaram Berkman et al. (2005)BERKMAN, A. et al. A critical analysis of the Brazilian response to HIV/AIDS: lessons learned for controlling and mitigating the epidemic in developing countries. Am J Public Health, v.95, p.1162-72, 2005.. Dentre os aspectos a destacar nessa política pública encontram-se a decisão de assumir iniciativas de prevenção aliadas ao fornecimento universal e gratuito da terapia antirretroviral, o estabelecimento de uma rede de serviços de saúde para atendimento a PVH e de laboratórios para execução de exames necessários para o adequado seguimento clínico dos pacientes tratados, o forte comprometimento governamental na execução de políticas voltadas à população afetada pela epidemia, com respeito aos direitos humanos, e o engajamento efetivo da sociedade civil organizada nas ações em saúde pública, por intermédio da atuação de organizações não governamentais (ONG). Nesse contexto, o tratamento antirretroviral constitui-se indubitavelmente na intervenção de maior impacto na morbidade e mortalidade relacionadas à aids. A distribuição gratuita de antirretrovirais no âmbito do SUS iniciou-se em 1991, com uso de zidovudina em monoterapia, passando a fornecer a combinação terapêutica considerada mais eficaz a partir de 1996. Em 2013 a recomendação nacional passou a ser de introduzir o tratamento antirretroviral a todas as PVH, independentemente do seu status imunológico, estratégia denominada "testar e tratar". Há evidência de que tal iniciativa seja não apenas benéfica para o indivíduo tratado, como também de que seja capaz de reduzir a transmissão sexual do HIV para os parceiros do indivíduo soropositivo, constituindo-se, portanto, em estratégia simultânea de tratamento e de prevenção. No final de 2014 registravam-se no país aproximadamente 450.000 PVH em terapia antirretroviral (Brasil, 2015a). A meta recomendada internacionalmente para 2030 é de que 90% dos indivíduos soropositivos tenham conhecimento de seu status sorológico, isto é, que tenham sido testados e identificados como infectados pelo HIV, e que 90% desses estejam recebendo tratamento antirretroviral.

É importante ressaltar que a epidemia de HIV/aids em nosso país possui as características de uma epidemia concentrada, isto é, embora exiba uma prevalência inferior a 1% na população geral (mais precisamente 0,6% de prevalência na população brasileira entre 15 e 49 anos - 0,4% entre as mulheres e 0,7% entre os homens), sua prevalência é superior a 5% em determinados grupos populacionais, denominados, por essa razão, grupos mais vulneráveis (populações-chave): 10%-15% é a prevalência observada entre homens que fazem sexos com homens (HSH), 5% entre os profissionais do sexo, e 6% entre as pessoas que usam drogas (injetáveis ou não) (Brasil, 2015a).

Desde o início da epidemia na década de 1980 até junho de 2015, 798.366 casos de aids foram registrados no país. Nos primeiros quinze anos da epidemia houve 83.551 casos, com concentração mais acentuada nas capitais do Sul e do Sudeste e em alguns municípios do estado de São Paulo. Em contraste, entre 1995 e 2004, foram registrados 304.631 casos, verificando-se expansão da concentração dos casos, principalmente para as capitais da região Nordeste e Centro-Oeste e duas capitais do Norte. A partir de então, a epidemia expandiu-se para todo o país. Embora hoje se encontre transmissão autóctone da infecção pelo HIV em quase a totalidade dos 5.570 munícipios brasileiros, pode-se dizer que a epidemia apresenta concentração em áreas metropolitanas. De fato, 14 das metrópoles brasileiras encontram-se entre os 26 municípios que exibiam as maiores taxas de detecção de casos de aids no país ao final de 2014.

Como se pode verificar na Figura 2, a taxa nacional de detecção de casos de aids mostra-se estável na última década. No entanto a situação epidêmica é bastante heterogênea: se considerarmos as diversas regiões administrativas do país, nos últimos anos vem-se observando tendência linear de elevação das taxas de detecção de casos nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país, enquanto na região Sudeste se verifica redução dessa taxa.

Figura 2
- Taxa de detecção geral de aids, taxa de detecção em menores de 5 anos e taxa de mortalidade por aids em metrópoles brasileiras (2002-2014).

A taxa de detecção de aids em menores de cinco anos pode ser empregada como marcador da transmissão materno-infantil da infecção pelo HIV. De modo geral, verifica-se significativa tendência de queda dessa taxa no país, embora possa ainda haver discrepâncias inter-regionais, com verificação de elevação expressiva dessa na região Norte do país.

No que se refere à mortalidade, pode-se dizer que desde o início da epidemia até dezembro de 2014, 290.929 óbitos relacionados à aids foram notificados ao Ministério da Saúde. De modo geral, pode-se afirmar que houve discreta redução das taxas de mortalidade relacionada à aids no Brasil, muito embora a situação uma vez mais se mostre heterogênea entre as várias regiões do país, com redução significativa na região Sudeste, ao passo que ainda se observa incremento de taxas nas regiões Norte e Nordeste. Tal panorama reflete-se na análise que conduzimos para as metrópoles brasileiras, composta por um elenco de municípios que se distribuem de modo desigual entre as diversas regiões do país. Acredita-se que as desigualdades inter-regionais possam estar relacionadas a diferenças na estruturação dos serviços de saúde entre as diferentes regiões, o que pode determinar maior proporção de diagnósticos tardios (identificação da infecção por HIV quando já existe deterioração significativa do sistema imunológico), o que se relaciona a um pior prognóstico. De modo global, 28% dos casos de aids entre homens e 24% entre mulheres brasileiros ocorrem quando a contagem de células CD4+ se encontra em número inferior a 200 células/mm3, evidenciando deficiência imunológica e, portanto, perda de oportunidades de testagem e reconhecimento da infecção em estágios menos avançados de comprometimento da saúde. A proporção de diagnósticos tardios é mais elevada justamente nas regiões Norte e Nordeste do país (Brasil, 2015a).

3) Leptospirose

A leptospirose é uma doença infecciosa febril aguda, de etiologia bacteriana, causada por espiroquetídeos do gênero Leptospira. Do ponto de vista epidemiológico, consideram-se como principais reservatórios de leptospiras na natureza os roedores sinantrópicos, isto é, aqueles que se adaptaram a viver junto ao homem, a despeito da vontade deste. Dentre esses destaca-se o rato de esgoto (Rattus norvegicus). A infecção humana por leptospiras depende do contato direto da pele ou mucosas com coleções de água nas quais se encontra urina de animais infectados. Em ambientes urbanos, considera-se relevante do ponto de vista epidemiológico a exposição acidental que ocorre após contato com água ou lama, por ocasião da ocorrência de fortes chuvas ou enchentes.

Embora se acredite que a maioria dos casos de infecção por leptospiras seja assintomática, ou seja, não acompanhada de quaisquer sintomas, em outros indivíduos sintomas inespecíficos podem surgir, após um período de incubação médio de 7 a 14 dias. Nessa situação a leptospirose pode ser confundida com outras síndromes febris como influenza, dengue, ou mesmo ser inespecificamente qualificada como uma "virose". Em uma menor proporção de casos, contudo, a leptospirose pode assumir um quadro moderado ou grave, acompanhado de complicações sérias, que podem levar o indivíduo à morte. As formas moderadas caracterizam-se pela ocorrência de febre com duração habitual de até uma semana, cefaleia, mialgias, anorexia, erupção cutânea, náuseas e vômitos. Nos casos graves podem ser observados cefaleia intensa, icterícia, irritação meníngea, hemorragia ocular e sinais de mau prognóstico, tais como a insuficiência renal, miocardite, insuficiência respiratória e fenômenos hemorrágicos, exigindo, frequentemente, cuidados intensivos e apresentando taxas de letalidade que variam entre 5% e 20%.

No Brasil, as regiões administrativas com maior incidência de leptospirose são a Sul e a Sudeste. Todavia, surtos de leptospirose têm sido também descritos nas regiões Norte e Nordeste do Brasil desde a década de 1980 (Ko et al., 1999KO, A. I. et al. Urban epidemic of severe leptospirosis in Brazil. Salvador Leptospirosis Study Group. Lancet, v.354, p.820-5, 1999.). Em áreas rurais, predominantemente na região Sul, as populações mais acometidas são compostas por agricultores do sexo masculino, que relatam se banhar em coleções hídricas ou trabalhar em áreas alagadas (Brasil, 2008). Nas metrópoles, em contraste, tais fatores de risco não são habitualmente identificados, sendo a população exposta de forma mais intensa quando da ocorrência de enchentes ou de desastres ambientais relacionados. Em estudo conduzido em área de favela em Salvador (Felzemburgh et al, 2014FELZEMBURGH, P. M. et al. Global morbidity and mortality of leptospirosis. PLoS Negl Trop Dis, v.8, n.5, p.e2927, 2014. ), identificaram-se o sexo masculino e a baixa renda como fatores associados à infecção primária por leptospiras e a idade entre 15 e 24 anos, e o fato de residir em proximidade a esgoto a céu aberto como fatores associados a maior risco de reinfecção.

Como se pode observar na Figura 3, a incidência anual de leptospirose no conjunto das metrópoles brasileiras mantém-se estável nos últimos anos, oscilando entre 2 e 3,5 casos/100.000 habitantes, demonstrando a vulnerabilidade das regiões metropolitanas à ocorrência dessa infecção bacteriana. Especial destaque pode ser dado às incidências muito acima da média nacional, observadas em 2014 nas cidades de Guarulhos (6,55), Recife (6,21), Curitiba (4,98), Maceió (4,97) e Belém (4,25). O controle da doença nas grandes cidades permanece com um desafio que extrapola a atuação individualizada do setor saúde, exigindo a adoção de esforços intersetoriais, envolvendo gestores responsáveis pelas políticas de ocupação do solo e habitação, de saneamento e coleta de lixo, de controle de roedores e, até mesmo, da educação. A letalidade da doença observada na média das áreas metropolitanas variou entre 8% e 16% no período analisado, porém algumas cidades apresentaram taxas bastante preocupantes como em 2014, por exemplo as de Rio de Janeiro (37,03%), Brasília (31,57%) e São Gonçalo (28,57%).

Figura 3
- Taxa de incidência e letalidade de leptospirose em metrópoles brasileiras (2001-2015).

Deve-se, contudo, ressaltar que a morbidade relacionada à leptospirose deve estar subestimada e a letalidade possivelmente superestimada nesta análise, tendo em vista que a maioria das notificações de casos brasileiros provém de registros hospitalares, restringindo-se, portanto, aos pacientes que exibem as formas mais graves da doença.

4) Hanseníase

A hanseníase, doença que na maior parte do mundo continua a ser chamada pelo seu nome ancestral, lepra, é conhecida pela humanidade há milênios. Trata-se de uma doença bacteriana, que afeta a pele e o sistema nervoso periférico, cujo agente etiológico é a bactéria Mycobacterium leprae, também conhecido como bacilo de Hansen, em homenagem ao cientista norueguês Gerhard Hansen, que a identificou, em 1879. As manifestações clínicas da doença refletem um continuum entre dois polos, a hanseníase tuberculoide e a hanseníase lepromatosa. No primeiro, o organismo da pessoa consegue, por intermédio da imunidade celular, conter a multiplicação do bacilo, resultando em uma doença localizada, com manchas na pele, que podem ou não apresentar alterações de sensibilidade, e acometimento dos nervos próximos a essas manchas.

No polo lepromatoso, a imunidade do indivíduo acometido não consegue conter a multiplicação do bacilo, e observam-se lesões de pele mais extensas e em maior número, e maior comprometimento neuronal, resultando em perda da sensibilidade térmica, tátil e dolorosa, ausência de sudorese e perda de pelos. Esse quadro favorece a ocorrência de traumas, que não são percebidos pelo doente, e podem levar a deformidades. A transmissão ocorre por via respiratória, com a eliminação do bacilo nas secreções respiratórias pelo doente lepromatoso. A transmissão exige contato íntimo e prolongado com o caso índice, e em geral ocorre no ambiente domiciliar. Como a transmissão é lenta, a incidência de casos em crianças e adolescentes menores de 15 anos é considerada um bom indicador da força de transmissão da doença na população.

O Mycobacterum leprae caracteriza-se por ser uma bactéria de crescimento lento, sendo necessárias de 24 a 48 horas para uma divisão celular. Nunca se conseguiu cultivá-lo em laboratório, e até a identificação de que os tatus são suscetíveis à infecção não existiam modelos animais adequados ao seu estudo.

Ao longo da história, os doentes de hanseníase sofreram preconceito e discriminação. A partir da Idade Média, passaram a ser confinados em colônias de leprosos, que persistiram até recentemente em alguns países.

A hanseníase até o século XIX apresentava distribuição mundial. Com a melhoria das condições de vida na Europa, na América do Norte e no Japão, suas prevalência e incidência foram diminuindo, mesmo na ausência de tratamento específico. O desenvolvimento de esquemas terapêuticos utilizando três medicamentos, a partir da década de 1970, possibilitou o tratamento e a cura da doença.

Em 1991, a Assembleia Mundial da Saúde, instância decisória máxima da Organização Mundial da Saúde (OMS), que reúne anualmente os ministros da saúde dos países-membro, aprovou a resolução recomendando a realização de esforços para a eliminação da hanseníase como problema de saúde pública até o ano 2000. A "eliminação da hanseníase como problema de saúde pública" seria atingida quando a prevalência da doença fosse igual ou menor que um caso para cada 10.000 habitantes. Admitia-se que chegando a esse nível de prevalência, a tendência seria a da sua contínua redução, até a interrupção completa da transmissão.

O Brasil é um dos poucos países do mundo a não ter atingido a meta da eliminação. Em 2014, último ano para o qual foram divulgados os dados, a prevalência nacional foi de 1,27 por 10.000. A incidência foi de 1,53 por 10.000. Todos os estados da região Sul e quase todos da região Sudeste atingiram a meta de eliminação, assim como os estados do Rio Grande do Norte e de Alagoas. Alguns outros aproximaram-se dela (AM, AC, AP, RR, PB, SE, BA, ES e DF).

Por outro lado, alguns estados permanecem com prevalência elevada, merecendo destaque Mato Grosso (10,19 por 10.000), Tocantis (4,53 por 10.000) e Maranhão (4,26 por 10.000). A análise da distribuição espacial dos casos de hanseníase revela que se podem identificar 10 "clusters" de municípios, onde se concentra cerca da metade dos casos novos de hanseníase no país. Esses clusters localizam-se em seis estados: Mato Grosso, Tocantis, Amazonas, Pará, Roraima e Bahia (WHO, 2016). A doença concentra-se em cidades de médio e pequeno portes nesses estados.

As migrações das zonas rurais para as urbanas, e das pequenas cidades para as grandes metrópoles, fizeram, porém, que a hanseníase também se urbanizasse. Nos 17 municípios de maior população no país, incluídos nesta análise (Figura 4), algumas capitais de estados nas regiões Norte e Nordeste continuavam a apresentar alta incidência de hanseníase em 2014: São Luís (incidência de 4,9 casos por 10.000 habitantes), Recife (3,4), Belém e Fortaleza (2,4 em ambas). Em quase todos os municípios analisados observou-se uma intensa queda na incidência durante o período analisado (2001-2014). As exceções são Salvador, onde a incidência manteve-se próxima a um caso por 10.000 habitantes durante todo o período, e São Luís, onde a queda não foi tão expressiva (de 6,5 em 2001, para 4,9 em 2014).

Figura 4
- Taxa de detecção de hanseníase na população geral, em menores de 15 anos e, com grau 2 de deformidade em metrópoles brasileiras (2001-2015).

A incidência em menores de 15 anos apresentou redução expressiva no grupo de municípios analisados, caindo de 0,70 caso por 10.000 habitantes para 0,43, entre 2001 e 2014. Nas quatro cidades onde a incidência na população geral permanecia alta, observou-se uma redução importante entre os menores de 15 anos no Recife (de 3,1 para 1,5 por 10.000) e em Belém (de 1,3 para 0,8). Por outro lado, em São Luís a detecção em menores de 15 anos quase não se alterou no período (de 2,2 para 2,0), assim como em Fortaleza (de 0,9 para 0,8). Brasília apresenta comportamento inverso, com o aumento da detecção em menores de 15 anos (de 0,13 para 0,39). Apenas três dos municípios analisados não apresentaram casos em menores de 15 anos em 2014: Curitiba, Porto Alegre e Guarulhos.

A principal medida de controle da hanseníase é o diagnóstico e o tratamento precoces. Com o tratamento é possível reduzir as fontes de infecção. A detecção de casos com grau 2 de deformidade indica o diagnóstico tardio. Todos os municípios analisados apresentaram alguma proporção de diagnóstico tardio, embora na análise conjunta dos 17 municípios a taxa de detecção tardia tenha decrescido em cerca de 30% no período. O diagnóstico tardio é um dos desafios enfrentados pelo programa na medida em que a prevalência e a incidência caem. Como o diagnóstico de hanseníase é um diagnóstico clínico, quando a doença se torna pouco frequente, os médicos perdem a familiaridade com ela, tendem a não considerá-la entre as hipóteses diagnósticas possíveis diante de um caso suspeito, muitas vezes contribuindo para um maior atraso no diagnóstico e levando ao agravamento do caso. Os medicamentos utilizados no esquema tríplice de tratamento são fornecidos a todos os países gratuitamente pela OMS, por doação da Sasakawa Memorial Health Foundation, organização não governamental filantrópica sediada no Japão.

A hanseníase foi incluída pela OMS entre as doenças tropicais negligenciadas. Esse grupo de doenças caracteriza-se por acometer as camadas mais pobres da população, principalmente nas regiões tropicais do planeta. Por acometerem populações pobres e marginalizadas, com baixa capacidade de vocalização e representação política, as doenças negligenciadas recebem pouca atenção da indústria farmacêutica e de produtos para diagnóstico, não havendo investimentos na pesquisa e inovação voltada a elas (WHO, 2010). Se, por um lado, a redução expressiva na sua prevalência e incidência na maioria das cidades atesta o sucesso do programa de controle, por outro, a redução nesses indicadores vem acompanhada de uma maior dificuldade no diagnóstico, levando ao diagnóstico tardio e à persistência de aglomerados de casos, geralmente localizados nas áreas mais pobres e desassistidas das grandes metrópoles, onde a transmissão e a evolução para maior gravidade se mantêm.

5) Tuberculose

A tuberculose pode ser considerada uma das doenças infecciosas de maior impacto em saúde global. Estima-se que um terço da população mundial se encontra infectado pelo Mycobacterium tuberculosis, e que 9,6 milhões de casos da doença e 1,5 milhão de óbitos a ela relacionados ocorreram em 2014 (Brasil, 2016). O Brasil situa-se entre os 22 países considerados prioritários para controle da tuberculose pela OMS, por concentrarem 80% dos casos da doença em todo o mundo. Em nosso país, foram diagnosticados, em média, 73 mil casos novos de tuberculose ao ano, no período de 2005 a 2014 (69.766 casos em 2014), e, em 2013, ocorreram 4.577 óbitos relacionados a essa causa (Brasil, 2015b). Para o efetivo controle da tuberculose consideram-se essenciais as ações voltadas ao diagnóstico precoce dos sintomas respiratórios, seu adequado tratamento, e à redução do estigma associado à doença. Deve-se ainda salientar a importância de levar em conta os determinantes sociais envolvidos na vulnerabilidade à aquisição da infecção, ao adoecimento e à resposta à terapêutica, uma vez que se associam de maneira significativa ao abandono do tratamento e, consequentemente, a baixas taxas de cura.

Ao analisarmos as tendências epidemiológicas da última década, verificamos que a incidência nacional da tuberculose vem reduzindo no país, tendo passado de 41,5/100.000 habitantes em 2005 para 33,5/100.000 em 2014 (Brasil, 2015b). Todavia, as regiões metropolitanas estudadas neste trabalho chamam a atenção, não apenas por terem apresentado taxas de incidência bastante superiores à média nacional no mesmo período, como pelo fato de a redução da incidência da doença nelas observada ter sido menos expressiva (Figura 5). Assim destacaram-se em 2014 as incidências verificadas, por exemplo, em Porto Alegre (99,3), Recife (98), Manaus (93,8), Belém (83,2), Salvador (62,7), Fortaleza (58,2), São Paulo (49,4), Maceió (49,1) e São Luís (46,5). Dignas de nota são, também, as elevadas taxas de abandono de tratamento nas metrópoles no mesmo ano, tendo superado os 15% em cidades como Fortaleza (15,2%), São Luís (15,3%), Goiânia (15,6%), Maceió (15,8%), Recife (17,4%), Curitiba (19,5%) e Porto Alegre (24,9%) (Brasil, 2015b). O abandono do tratamento é bastante preocupante em termos de Saúde Pública, não apenas pelo risco de desfechos clínicos favoráveis no indivíduo infectado, como também pela possibilidade de manter o paciente infectante e, ainda, contribuir para a emergência de isolados de M. tuberculosis resistentes aos quimioterápicos de primeira linha.

Figura 5
- Taxa de incidência de tuberculose (todas as formas), tuberculose bacilífera e taxa de mortalidade associada à tuberculose em metrópoles brasileiras (2001-2013).

Um dado de relevância epidemiológica a ser considerado é a frequência com que se identifica a coinfecção HIV-tuberculose. Sabe-se que o risco de desenvolvimento de tuberculose-doença é significativamente mais elevado entre pessoas que vivem com HIV e que esse agravo segue como a principal causa de morte por infecção entre os pacientes de aids no Brasil, e a segunda no mundo (Domingues; Waldman, 2014DOMINGUES, C. S. B.; WALDMAN, E.A. Causes of death among people living with AIDS in the pre- and post-HAART eras in the city of São Paulo. PLoS One, v.9, n.12, p.e114661, 2014.; Montrales et al., 2015MONTRALES, M. T. et al. HIV-associated TB syndemic: a growing clinical challenge worldwide. Front Publ Health, v.3, n.281, 2015.; Brasil, 2015b). Além disso, o tratamento da tuberculose entre PVH deve levar em conta a interação medicamentosa que existe entre as drogas tuberculostáticas e os antirretrovirais. Das metrópoles analisadas neste estudo, destacam-se pela frequência da coinfecção HIV-tuberculose as cidades de Manaus (20%), Curitiba (22%) e Porto Alegre (28%).

No que tange à mortalidade por tuberculose, muito embora a tendência nacional seja de discreta queda das taxas, que se reduziram de 2,8 para 2,3 óbitos/100.000 habitantes entre 2004 e 2013, a redução nas áreas metropolitanas mostrou-se menos significativa (Figura 5). Ao lado disso, verificou-se que diversas metrópoles apresentaram taxas de mortalidade por essa causa superiores à média nacional em 2013. Dentre essas, destacaram-se as cidades de Recife (6,56), Rio de Janeiro (6,48), Belém (6,03) e Maceió (5,41/100.000).

Comentários finais

Usualmente supõe-se que o ambiente urbano reúna melhores condições para o enfrentamento de problemas de saúde pública, em razão de sua maior densidade populacional e da maior proximidade à rede instalada de serviços de saúde, da maior disponibilidade de recursos financeiros, da visibilidade social mais intensa de que desfrutam seus habitantes, ou mesmo do acesso mais fácil aos meios de comunicação de que dispõem (Barbiero, 2014). Pelo contrário, destacam alguns autores que as cidades apresentam atributos físicos e sociais que podem afetar negativamente a saúde das pessoas (Caiaffa et al., 2008CAIAFFA, W. T. et al. Saúde urbana: "a cidade é uma estranha senhora, que hoje sorri e amanhã te devora". Cad Saúde Pública, v.13, p.1785-96, 2008.). Assim, por exemplo, as doenças infecciosas tendem a ter sua incidência mais elevada em cidades maiores, potencialmente em razão da maior velocidade de disseminação em ambientes mais densamente povoados (Rocha, 2015ROCHA, L.E.C. The non-linear health consequences of living in larger cities. J Urban Health, v.92, n.5, p.785-99, 2015.).

Diante dessa aparente contradição entre a "vantagem do urbano" e a "penalidade do urbano", apontada por Vlahov et al. (2005)VLAHOV, D. et al. Toward an urban health advantage. J Public Health Manag Pract, v.11, p.256-8, 2005., buscamos analisar as tendências de morbidade e de mortalidade associadas a agravos infecciosos nas 17 regiões metropolitanas brasileiras entre 2001 e 2015. Com base em nossos resultados concluímos que algumas doenças infecciosas de notificação compulsória seguem representando importantes causas de morbidade e mortalidade nas metrópoles brasileiras no período analisado. Dentre os agravos infecciosos reconhecidos como de relevância epidemiológica atual, em termos de seu impacto na morbimortalidade das populações que nelas residem, incluem-se doenças de transmissão respiratória, tais como a hanseníase e a tuberculose, infecções sexualmente transmissíveis (HIV/aids), doenças relacionadas ao contato com coleções de água, como a leptospirose, e infecções transmitidas por insetos vetores (dengue). Nessas enfermidades, o contato próximo ou mesmo íntimo entre pessoas infectadas e suscetíveis, ou ainda condições externas facilitadoras da transmissão, tais como a ocorrência de enchentes ou a proliferação de insetos no ambiente peri- e intradomiciliar parecem contribuir para a persistência da circulação de seus agentes causais.

Acreditamos que o conhecimento mais aprofundado da situação epidemiológica desses agravos infecciosos em metrópoles brasileiras pode ofertar subsídios importantes para o estabelecimento de intervenções eficazes voltadas a seu manejo, controle e prevenção, visando contribuir para melhoria das condições de saúde no ambiente urbano e, consequentemente, das condições de vida de seus habitantes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2016
  • Aceito
    01 Abr 2016
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